Intoxicações pelo CO 2
O Dióxido de Carbono ou Anidrido Carbónico (CO2) é um gás incolor, inodoro e insípido à pressão ambiente. Está presente na atmosfera na proporção de cerca de 0,03% a 0,04% produzido por todos os seres vivos (animais e plantas) nos processos normais de respiração celular e produção de energia pela via aeróbica.
Durante um exercício violento, parte da energia consumida pode ser produzida pela via anaeróbica, que é menos eficaz e na qual não intervêm o Oxigénio, havendo produção de ácido láctico em lugar de dióxido de carbono. Este ácido láctico vai estimular a respiração e acaba por ser metabolizado em CO2 e água, logo que haja disponibilidade de Oxigénio.
No mergulho recreativo convencional, a pequena percentagem de CO2 existente no ar atmosférico, mesmo pressurizado, não parece trazer qualquer risco acrescido ao mergulhador. Porém a situação é diferente no mergulho profundo, pois aí a pressão parcial do gás pode atingir valores perigosamente elevados.
Num indivíduo saudável, em repouso, são produzidos cerca de 200ml de CO2 por minuto, o que corresponde a cerca de 5ml de CO2 por cada 100ml de sangue circulante, para um débito cardíaco de cerca de 4l/min.
Todo este CO2 deve ser eliminado do sangue circulante através dos pulmões. Se tal não ocorrer (re-inalação do ar expirado), a taxa de CO2 no sangue arterial sobe cerca de 3 a 6mm Hg/min.
Durante o exercício físico, a produção de CO2 pode subir para 3l/minuto por curtos períodos de tempo sem que a pressão do CO2 sofra grande variação, desde que a ventilação do indivíduo seja eficaz.
A tensão do CO2 (ver figura) é de cerca de 46mm Hg no sangue venoso e cerca de 40mm Hg no sangue arterial. A tensão deste gás nos alvéolos pulmonares é de cerca de 40mm Hg e, após a sua dissolução no ar do Volume Residual Pulmonar, fica com uma tensão final no ar expirado de cerca de 32mm Hg (aproximadamente 4% do volume do ar expirado).
Desenha-se, desta forma, uma cascata de gradientes de tensão parcial deste gás (46 – 40 – 32 – 0,3mm Hg) que o transporta passivamente para a atmosfera. Notar particularmente o gradiente “ar expirado – atmosfera” (32 – 0,3mm Hg), em que a pressão parcial do CO2 no ar expirado é cerca de 100 vezes superior à sua pressão parcial na atmosfera, o que torna este gás extremamente difusível através duma ventilação eficaz (ver tabela).

O CO2 é muito solúvel na água (solubilidade cerca de 20 vezes superior à do Oxigénio). Isto significa que os pulmões libertam CO2 muito mais facilmente do que absorvem Oxigénio, o que faz do CO2 o mais potente estímulo respiratório.
O Centro Respiratório (núcleo de células nervosas localizadas na base do cérebro) é muito sensível às variações da tensão deste gás no sangue arterial, bem como às variações do Ph sanguíneo (valor que “mede” a acidez do sangue – quanto mais baixo for o Ph, mais ácido é o sangue).
O Ph do sangue é determinado principalmente pelo Bicarbonato, que é a principal forma de transporte do CO2. O aumento da tensão de CO2 livre no sangue arterial, bem como a descida do Ph do sangue em algumas milésimas, estimulam o Centro Respiratório a aumentar a frequência e amplitude ventilatória, no sentido de libertar maior quantidade de Dióxido de Carbono.
Isto ocorre normalmente durante um exercício físico, quando podem ser produzidos até 3 litros de CO2 por minuto (15 vezes mais do que em repouso), como foi referido atrás. Desde que não haja impedimento físico ou fisiológico para a sua libertação, tais valores não constituem qualquer perigo para a saúde do indivíduo.
Indivíduos com fraca preparação física produzem mais CO2 do que indivíduos treinados, para o mesmo nível de esforço físico.
Outro estímulo respiratório é constituído pelo Oxigénio dissolvido no plasma. Este actua nos seios carotídeos inibindo o estímulo respiratório. Trata-se dum mecanismo lento e pouco eficaz mas que, em determinadas circunstâncias (caso dos indivíduos retentores de CO2), pode constituir o único estímulo para a manutenção da respiração a níveis aceitáveis.
A intoxicação por CO é, portanto, diferente das outras intoxicações: não se trata de um gás que o mergulhador carrega consigo na garrafa e vai inalar, mas sim de um gás que provém do seu próprio metabolismo e o pode intoxicar, se não for completa e eficazmente removido através da respiração.
Por outro lado, durante o mergulho, a produção de CO2 não sofre qualquer variação directamente relacionável com a pressão ambiente, isto é, o organismo produz a mesma quantidade de moléculas de CO2 por unidade de tempo, independentemente da profundidade. Além disso, a pressão ambiente também não altera, por si só, a tensão a que o gás se encontra dissolvido no sangue.
A hipercápnia (nível elevado de CO2 no sangue) pode ser aguda ou crónica. A hipercápnia crónica (retenção) só ocorre nas doenças pulmonares e no mergulho de saturação, pelo que não entram no âmbito deste curso. Interessa-nos, pois, estudar a hipercápnia aguda.

Excluindo a asfixia ou o afogamento, há cinco mecanismos que podem desencadear a retenção de CO2 e hipercápnia:
- Falha dos absorventes químicos nos sistemas fechados ou semi-fechados
- Ventilação inadequada de espaços fechados (submarinos, câmaras de descompressão ou capacetes de mergulho e alimentação de gases a partir da superfície)
- Ventilação pulmonar inadequada
- Utilização de misturas ricas em Oxigénio
- Contaminação da mistura respirável
Os dois primeiros mecanismos ultrapassam o âmbito deste curso, pelo que não serão desenvolvidos.
VENTILAÇÃO PULMONAR INADEQUADA
A única via de libertação rápida do CO2 é constituída pelos Pulmões. Para que tal ocorra, a respiração deverá ser eficaz e a eficácia da respiração é precisamente medida pela taxa de CO2 no sangue periférico. Vários mecanismos estão implicados na baixa da eficácia respiratória do mergulhador:
- Alteração do padrão ventilatório
- Aumento da constrição torácica
- Aumento da densidade da mistura respiratória
- Aumento do espaço morto
ALTERAÇÃO DO PADRÃO VENTILATÓRIO
A inspiração à superfície é conseguida à custa dos músculos respiratórios que, ao contraírem-se, criam uma pressão negativa no interior dos pulmões, obrigando o ar a penetrar pelas vias respiratórias. A acção destes músculos dilata a caixa torácica permitindo assim a entrada do ar para os pulmões.
O esforço inspiratório no indivíduo saudável em repouso é mínimo. A expiração é totalmente passiva e é devida à elasticidade da caixa torácica que, natural e espontaneamente, retoma o seu volume inicial.
Em mergulho, esta mecânica ventilatória não é tão eficaz quanto à superfície, sendo profundamente alterada sobretudo a fase expiratória, que passa a ser fortemente activa. O mergulhador tem, literalmente, que soprar o ar contra uma resistência oferecida pelo regulador, o que pode corresponder a um esforço cerca de 25 vezes superior ao normal. Segundo alguns autores, esta alteração da mecânica ventilatória leva a uma redução da difusão dos gases nos alvéolos pulmonares.
Esta relativa ineficácia ventilatória, mais do que hipóxia, provoca uma retenção do CO2, tanto maior quanto maior for o esforço desenvolvido na actividade.
AUMENTO DA CONSTRIÇÃO TORÁCICA
O equipamento do mergulhador perturba-lhe os movimentos respiratórios. Referimo-nos ao fato isotérmico apertado, especialmente se for fato seco e estiver muito insuflado, bem como ao colete compensador de flutuabilidade, principalmente os do tipo jaqueta, que literalmente “abraçam e constringem o tórax do mergulhador. Os coletes dorsais (wing) são menos constritivos, pois a bolsa insuflável está colocada na parte posterior do arnês, sem relação com o tórax do mergulhador.
Esta constrição pulmonar leva a um padrão de ventilação superficial e rápida que, mais do que hipóxia, causa a retenção de CO2.
AUMENTO DA DENSIDADE DA MISTURA RESPIRATÓRIA
O aumento da profundidade determina um aumento na densidade do gás respirado. Este aumento de densidade gera maior resistência ao seu fluxo pelo regulador e pelas próprias vias respiratórias
do mergulhador, o que o obriga a um maior esforço ventilatório, levando assim a maior produção de CO2.
Enquanto os mecanismos de compensação respiratórios funcionarem correctamente, não haverá qualquer problema. No entanto, estes mecanismos esgotam-se rapidamente com o cansaço do mergulhador, que poderá sofrer de hipercápnia caso prossiga o mergulho.
Muitos autores têm encontrado uma relação entre a susceptibilidade à intoxicação pelo CO2 e a utilização de misturas respiratórias à base de Azoto (ar atmosférico e Nitrox). O mesmo não se passa (tanto) com as misturas à base de Hélio (Trimix e Heliox). Tudo parece indicar que o problema está na densidade da mistura respiratória: quanto mais densa a mistura for, maior é a susceptibilidade à intoxicação pelo Dióxido de Carbono.
Ainda não é bem claro o mecanismo da génese da hipercápnia nestes casos. Alguns investigadores não encontram suficiente aumento no CO2 que justifique a intoxicação, nem o mesmo regulador gera a mesma hipercápnia em mergulhadores diferentes.
Segundo estes autores, o problema poderá estar na resposta do Centro Respiratório ao aumento do CO2, que nestes mergulhadores estaria diminuída (menos sensível) e levaria à hipercápnia, com a consequente intoxicação.
AUMENTO DO ESPAÇO MORTO
É tradicional apresentar esta razão como possível origem da hipercápnia, nomeadamente quando associada a mangueiras do aparelho respiratório demasiado longas. Isto verificar-se-ia quando parte do ar expirado pelo mergulhador fosse de novo inspirada, nomeadamente nos aparelhos antigos (reguladores de duas traqueias) em que a válvula de escape estava situada nas costas do mergulhador, junto à garrafa. No entanto, nos modernos aparelhos de circuito aberto, tal não se verifica, porquanto a saída de ar do aparelho se faz a poucos centímetros do bucal.
Também se pode falar em espaço morto referindo as vias aéreas do mergulhador. Se o seu padrão respiratório for superficial, uma parte importante do ar corrente é constituído pelo ar existente nas próprias vias respiratórias, portanto rico em CO2. Neste caso há re-inalação de ar e pode ocorrer retenção de CO2.
UTILIZAÇÃO DE MISTURAS RICAS EM OXIGÉNIO
Verificou-se que o mesmo mergulhador retinha mais CO2 quando respirava ar enriquecido em Oxigénio (Nitrox) do que quando respirava ar atmosférico comprimido. Experiências sucessivas levaram a entender que naqueles mergulhadores a resposta ventilatória ao esforço era mais baixa, podendo responder por cerca de 25% da retenção total.

A explicação encontrada é esta: durante o exercício físico há sempre a formação de algum ácido láctico que, actuando no Centro Respiratório, aumenta o volume respiratório/minuto. A elevada tensão de Oxigénio inibe esta acção do ácido láctico, pelo que ocorre retenção de CO2.
CONTAMINAÇÃO DA MISTURA RESPIRÁVEL
A contaminação acidental da mistura respiratória por CO2 é praticamente impossível, porque este gás não faz parte do arsenal gasoso das estações de enchimento normais. Apenas se vislumbram duas possíveis fontes de contaminação:
- A mangueira de aspiração do compressor está localizada em recinto fechado e mal ventilado, frequentado por muitas pessoas ao mesmo tempo. Essas pessoas exalam CO2 na respiração, pelo que, em virtude da má ventilação, aumentariam para níveis muito altos o CO2 da atmosfera do local da captação de ar pelo compressor. A directiva europeia DIN 3188 estabelece os parâmetros que caracterizam a pureza do ar respirável, determinando para o CO2 uma taxa inferior a 500 ppm, a que corresponde uma percentagem inferior a 0,05% da atmosfera respirável. Este valor só se obtém garantindo uma boa ventilação no local de captação de ar.
- No mergulho em gruta (e em naufrágio) podem formar-se bolsas de ar entre o nível da água e o tecto da gruta. O mergulhador não avisado pode ser tentado a tirar a máscara e o bocal para respirar um pouco de “ar fresco”. Provavelmente muitos antes dele pensaram o mesmo, pelo que aquele ar é tudo menos fresco e pode conter enorme quantidade de CO2.
RETENTORES DE CO2
Algumas pessoas retêm naturalmente o Dióxido de Carbono, talvez devido a uma menor sensibilidade do centro respiratório ao CO2 circulante.
Assim, nestas pessoas, um aumento daquele gás no sangue não provoca o normal aumento da frequência e da amplitude da ventilação, como seria natural, podendo o aumento de CO2 circulante chegar a níveis tóxicos.
Nestas pessoas, o estímulo respiratório é desencadeado quase exclusivamente pela taxa de Oxigénio circulante, que atua ao nível dos seios carotídeos em um processo relativamente lento e pouco eficaz de controlo da respiração. São normalmente do sexo masculino, gordos, ressonam e padecem muitas vezes de apneia do sono.
RESPIRAÇÃO PENDULAR
Muitos mergulhadores praticam um tipo de respiração e que fazem apneias tanto inspiratórias como expiratórias. O objetivo deste tipo de respiração será o de poupar o ar da garrafa e poder prolongar o mergulho especialmente a baixas profundidades. Isto é errado, inútil e perigoso por duas razões:
Em primeiro lugar porque este tipo de respiração leva invariavelmente à retenção de Dióxido de Carbono. De facto, este gás passa muito rapidamente para os alvéolos pulmonares, pelo que a apneia não leva a uma maior expurgação do CO2 do sangue circulante.
Em segundo lugar, porque a retenção de CO2 leva a um maior estímulo respiratório, o que faz o mergulhador hiperventilar para resolver esta retenção, levando-o a um maior gasto de ar do que teria se praticasse uma respiração normal.
CLÍNICA DA HIPERCÁPNIA
A forma de apresentação da hipercápnia depende do grau de retenção de CO2 e da velocidade com que se verificou essa retenção.
Há mecanismos fisiológicos que, em certa medida, podem compensar algum aumento do CO2 circulante pelo que, clinicamente, a retenção pode apresentar-se desde simples alterações analíticas (acidose respiratória compensada – subida do bicarbonato e descida do cloreto) apenas detectáveis por gasimetria arterial, até à perda súbita de consciência. Se esta perda de consciência ocorrer com mergulhador submerso, o risco de afogamento é real. A acção fisiológica do CO2 depende da taxa a que se encontra no sangue circulante (ver tabela).

Um indivíduo saudável inalando uma mistura respirável a que se juntou CO2 à taxa de 3% vê o volume respiratório por minuto duplicado, quer devido ao aumento do volume corrente (amplitude) como à frequência respiratória.
A 4% iniciam-se os processos de retenção. Até uma taxa de cerca de 6% a 1 ATA no gás inspirado (experiências em laboratório) apresenta-se como estimulante da respiração (respiração profunda e rápida) bem como vasodilatador e acelerador do ritmo cardíaco.
A partir da taxa de 10% no gás inspirado conduz a depressão da função respiratória, hipotensão, baixa do ritmo cardíaco e confusão mental, convulsões e perda de consciência. Pode haver cefaleia (tipicamente frontal, violenta, que não cede a qualquer analgésico convencional), sudação, pele vermelha e quente, falta de coordenação muscular, desorientação e agitação.
Dentro de água, o mergulhador não nota a sudação nem a vermelhidão e o aumento da temperatura da pele. Também poderá não dar a necessária importância aos outros sinais e sintomas, por isso, normalmente acontece que o primeiro (e último) sinal de alarme por uma possível intoxicação por CO2 é a súbita e inexplicável perda da consciência.
Na prática, as sensações referidas por mergulhadores afectados são a dispneia (dificuldade em respirar “o necessário”) e a aparente incapacidade do seu regulador poder debitar a necessária quantidade de ar, acompanhadas de cefaleia frontal violenta. Estas sensações rapidamente podem degenerar em pânico, susceptível de desencadear no mergulhador menos avisado a mais errada das atitudes (subida precipitada com a possibilidade dos acidentes dela resultantes).
A retenção de CO2 potencia a narcose pelo Azoto e a toxicidade do Oxigénio. Vários mecanismos têm sido adiantados para explicar este facto, mas o que tem tido mais consistência clínica tem a ver com a acção vasodilatadora do Dióxido de Carbono a nível cerebral. Com efeito, promovendo a vasodilatação cerebral, mais Oxigénio e mais Azoto chegam ao tecido nervoso central, acelerando os seus efeitos tóxicos a este nível.
TRATAMENTO
A retenção de CO2 pode ser revertida pelo aumento da amplitude (volume) e frequência respiratórios. Assim, perante a suspeita (ou certeza) de retenção, o mergulhador deve suspender toda a sua actividade física, repousar e respirar lenta, calma e profundamente.
Se os sintomas desaparecerem rapidamente, pode continuar o seu mergulho com um nível de esforço mais baixo. Se não ocorrerem rápidas melhoras, deve abortar o mergulho e regressar à superfície.
Aqui deve respirar o ar atmosférico o mais profundamente que lhe for possível ou ser-lhe ministrado Oxigénio a 100% com um caudal de 15 l/min.
PREVENÇÃO
A retenção de CO2 previne-se. Para tanto, o mergulhador deve:
- Evitar a utilização de equipamento muito constritivo, nomeadamente fatos isotérmicos e compensadores de flutuabilidade do tipo jaqueta muito apertados.
- Usar reguladores bem compensados, nomeadamente no mergulho profundo.
- Proceder à correcta manutenção dos reguladores.
- Evitar todo o tipo de esforço violento, inútil ou desnecessário.
- Respirar lenta e profundamente, mas sem o objectivo de “poupar ar”, nomeadamente evitando a respiração pendular. Em caso de maior necessidade de ar, respirar mais profundamente e não mais rapidamente.