Lesson 1, Topic 1
In Progress

Intoxicações pelo Azoto

A intoxicação pelo Azoto define-se como sendo um síndrome clínico caracterizado pela diminuição das capacidades intelectuais e neuro-musculares, com alteração do estado de espírito e comportamento de um indivíduo, provocados por um aumento da pressão parcial do Azoto nos seus tecidos, nomeadamente no Sistema Nervoso Central (SNC). Não está ainda perfeitamente esclarecido o local e modo de produção da lesão neurológica.

O Azoto (N2), faz parte dum conjunto de gases denominados gases inertes, entre os quais se incluem o Árgon, Crípton, Hélio, Hidrogénio, Néon, Xénon e gases anestésicos, como o Éter, Halotano, etc.

Estes gases são considerados “inertes” porque a sua ação no ser vivo ocorre (tudo o indica) apenas por fenómeno físico, sem desencadear qualquer reacção química. Prova disto é o facto dos sintomas de intoxicação ocorrerem sob um determinado valor de pressão, mais ou mesmo constante para o mesmo indivíduo e o mesmo gás, e esses sintomas desaparecerem rapidamente com o simples abaixamento da pressão.

UM POUCO DE HISTÓRIA


Ao longo do tempo a narcose por Azoto foi sendo conhecida por vários nomes, como intoxicação por Azoto, doença das profundidades ou l’ivresse des profondeurs (Jacques Cousteau). O fenómeno é conhecido desde que o homem mergulha a profundidades apreciáveis e consegue aí ficar o tempo suficiente para que a narcose se manifeste. É ainda conhecido desde que foi inventado o compressor de ar e foi possível submeter seres humanos a experiências em ambientes hiperbáricos, embora inicialmente não tivesse sido possível relacionar as duas situações.

A primeira descrição da narcose pelo Azoto foi reportada pelo francês Junod em 1935, que observou alterações do estado de espírito em pessoas submetidas a ambiente hiperbárico. Da mesma forma, trabalhadores escafandristas, operando a partir de sinos de mergulho, eram vítimas de uma estranha doença caracterizada por confusão mental que os obrigava ao retorno imediato à superfície, onde os sintomas desapareciam quase de imediato.

Ao longo do tempo, vários investigadores propuseram hipóteses explicativas (Intoxicação por O2? Intoxicação por CO2? Medo e claustrofobia? Impurezas do ar respirado?), mas sem grandes conclusões.

Em 1933 a Royal Navy fez a primeira descrição completa do fenómeno, após cuidadas observações dos mergulhadores envolvidos em actividades relacionadas com os submarinos, mas não avançou com nenhuma hipótese explicativa. Só em 1935 foi avançada a hipótese de intoxicação por Azoto (Behnke, Thomson e Motley).

Nessa altura, outros investigadores (Meyer e Overton) relacionaram o fenómeno com a capacidade de dissolução do Azoto nas gorduras (hipótese de Meyer-Overton) e propuseram a substituição do Azoto por Hélio nas misturas respiratórias para utilização em ambiente hiperbárico.

Em 1959, com o aparecimento das câmaras hiperbáricas, foi finalmente possível comprovar a hipótese do envolvimento do azoto na doença das profundidades, em detrimento de todas as outras teorias, embora se continuasse a desconhecer o mecanismo de acção do gás na génese da intoxicação.

MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS


O azoto atua ao nível do Sistema Nervoso Central, embora ainda se desconheça o local exato. Os primeiros sintomas ocorrem a uma profundidade variável de indivíduo para indivíduo, mas mais ou menos constante para o mesmo indivíduo (profundidade crítica do azoto).

Tipicamente atinge-se a máxima manifestação clínica ao fim de dois minutos após se alcançar a profundidade crítica, mantendo-se mais ou menos constante ao longo do tempo, sem agravamento, desde que o indivíduo permaneça à mesma profundidade. Com o aumento da profundidade dá-se o agravamento dos sintomas, que revertem prontamente logo que reduzida.

A narcose pelo Azoto é uma intoxicação dependente da pressão parcial de Azoto no ar respirável e não do tempo de exposição ao gás.

Existe uma marcada variação individual à sensibilidade ao Azoto e a situação pode ser potenciada ou agravada por outras condicionantes, nomeadamente o stresse, frio, fadiga, pressão parcial do O2, níveis elevados de CO2, sedativos, álcool e outros depressores do Sistema Nervoso Central. Parece haver alguma proteção contra os seus efeitos através do esforço moderado.

A correta aprendizagem das tarefas a realizar e a motivação para o mergulho reduzem as manifestações da intoxicação. Parece ainda que há uma certa habituação do Sistema Nervoso Central ao ambiente hiperbárico, com diminuição das manifestações ao fim de algum tempo de exposição (efeito de tolerância).

Sendo os efeitos do azoto progressivos com o aumento da profundidade, pode estabelecer-se um quadro que relaciona a profundidade, a pressão total, a pressão parcial de azoto e os efeitos esperados no indivíduo médio respirando ar comprimido.

QUANTIFICAÇÃO DOS EFEITOS


Embora ainda não estejam disponíveis testes para a quantificação rigorosa das alterações das funções do SNC sujeito à intoxicação por azoto, a pesquisa continua. Tais testes seriam particularmente úteis para o estudo da susceptibilidade individual ao azoto, o que seria muito importante para fazer a seleção de mergulhadores para actividades profissionais, por exemplo.

Serviriam também para fazer a comparação das capacidades narcóticas dos diferentes gases inertes possíveis de usar como diluentes do Oxigénio na elaboração de misturas respiratórias seguras, para estudar outros factores susceptíveis de provocar ou condicionar a “Doença das Profundidades”, etc.

Descrevem-se dois grandes tipos de testes para este fim: a observação do estado mental e destreza manual e a observação das alterações em alguns parâmetros da neurofisiologia do SNC dos indivíduos.

ESTADO PSICOLÓGICO


Os parâmetros normalmente estudados são: a capacidade cognitiva (cálculo mental e testes de memória), os tempos de reação a estímulos e a destreza manual. A capacidade cognitiva é a primeira a ser afectada e a destreza manual a última.

Alguns estudos sugeriram que indivíduos de elevado Quociente de Inteligência (QI) são menos afetados, embora esta diferença possa dever-se apenas ao facto dos testes utilizados serem os mesmos para todos os indivíduos observados, independentemente do seu QI. Por isso, talvez seja necessário adaptar o grau de dificuldade do teste ao QI do indivíduo observado. Da mesma forma a ansiedade altera os dados da observação, estudando mergulhadores em piscina e realizando os mesmos testes à mesma profundidade em mar aberto.

Profund.
(metros)
Pa
(bar)
Pp N2
(bar)
Efeitos Esperados
10 – 302 – 41,58 – 3,16Alteração nas funções corticais superiores (raciocínio, memória recente, aprendizagem, atenção, rapidez na resposta a estímulos)
Euforia, excessiva confiança, baixa de atenção
Leve baixa das capacidades físicas e mentais
Estado semelhante ao“estado de alegrete”da intoxicação alcoólica
30 – 504 – 63,16 – 4,74Riso desconexo e verborreia (ainda controláveis pelo próprio)
Fixação de ideias
Visão em túnel, ilusões, sonolência
Diminuição da memória recente, erro de cálculo, erro de julgamento
50 – 706 – 84,74 – 6,32Comportamento jovial ou aterrorizado
Riso excessivo a tocar a histeria
Severa quebra das capacidades intelectuais
Destreza manual ainda pouco afetada
70 – 908 – 106,32 – 7,90Apreciável atraso na resposta a estímulos
Concentração fortemente diminuída
Confusão e erros grosseiros de raciocínio
Euforia incontrolável, hiperexcitabilidade
Destreza manual diminuída
Perda pura e simples das capacidade físicas e mentais (estado de total embriaguez)
> 90> 10> 7,90Alucinações
Inconsciência
Coma e morte por afogamento

Todas estas observações parecem indicar que a forma de actuação do azoto no SNC envolve o aumento do tempo de resposta deste (manifestado pelo aumento do tempo de reacção a estímulos), o que pode ocorrer quer ao nível da percepção do estímulo, quer ao nível do seu processamento pelo córtex cerebral, quer ao nível da sensação ou reacção. Provavelmente ocorrerá a todos estes níveis simultaneamente.

Ainda subsistem muitas dúvidas nesta matéria. Assim, não é fácil distinguir adaptação física do SNC à simples aprendizagem, qual o verdadeiro papel da ansiedade, do frio e da fadiga, qual o papel do CO2 (efeito aditivo ou sinérgico), etc. A investigação continua.

ALTERAÇÕES NEUROFISIOLÓGICAS


Têm-se procurado quantificar e registar objectivamente, através de diversos testes e exames, as eventuais alterações na função do SNC durante a exposição aos gases inertes:

ELECTROENCEFALOGRAMA

O teste mais utilizado é o Electroencefalograma (EEG). Este teste regista em papel ou suporte magnético as variações da energia electromagnética emitida pelo cérebro sob a forma de ondas com determinada amplitude (voltagem) e frequência. Descrevem-se alterações do padrão destas ondas no indivíduo sujeito a atmosférica hiperbárica, mas nem todos os indivíduos as apresentam. Os estudos continuam.

FREQUÊNCIA DE FUSÃO DE INTERMITÊNCIA

Outro teste muito utilizado tem este nome complicado. Utilizando uma lâmpada estroboscópica (semelhante à utilizada nas discotecas), em que a frequência de disparo (flash) pode ser modificada, vai-se aumentando gradualmente essa frequência e pede-se ao indivíduo observado que diga quando passa a ver, não uma sequência rápida de disparos, mas sim uma luz contínua. Verifica-se que essa frequência é menor em ambiente hiperbárico do que na atmosfera normal, é característica e constante para cada indivíduo e aumenta ligeiramente com a continuada exposição ao Azoto (efeito de tolerância?). Estes teste avalia o aumento do tempo de transmissão dos estímulos através do Sistema Nervoso Central.

ETIOLOGIA

É normalmente aceite que todos os gases inertes atuam sobre o SNC por mecanismo idêntico e que esse mecanismo é físico e não químico. A isto se deu o nome de Hipótese Unitária da Narcose. Muitos têm sido os autores a tentar descobrir o ponto do SNC que, em primeira mão, é atingido pelo efeito da narcose, mas tal tarefa não tem sido fácil. A investigação tem sido feita a partir das diferentes características físicas dos gases envolvidos.

SOLUBILIDADE NOS LÍPIDOS

Meyer e Overton notaram o paralelo entre a solubilidade dos diferentes gases inertes em óleo e a sua potência para gerar narcose (potencial narcótico do gás). Assim, devido à sua solubilidade na gordura, o gás seria captado pelos lípidos do SNC e de alguma forma exerceria o seu efeito narcótico. O principal ponto do SNC rico em gordura é a parede celular. Ao captar gás a parede celular aumenta de espessura, o que provocaria alteração da sua função. Esta teoria foi confirmada quando experimentalmente se provocou um aumento da pressão hidrostática pericelular, aumento esse que reduziu a espessura da parede celular, tendo esta recuperado a sua função.

PESO MOLECULAR

Tentou relacionar-se a capacidade narcótica dum gás com seu peso molecular. Segundo esta teoria, o aumento do peso molecular levaria ao aumento da densidade do gás que, por sua vez, levaria à retenção de CO2 pela célula nervosa. Isto levaria à hipóxia celular e à consequente diminuição da função. Porém, medições sanguíneas e intra-cerebrais do CO2 e a medição do consumo cerebral de O2 não mostraram qualquer diferença antes e depois da exposição ao azoto hiperbárico, pelo que esta teoria não tem consistência. No quadro seguinte estão registadas algumas destas características físicas dos diferentes gases inertes e o seu potencial narcótico comparado com o do azoto. Assim, pode verificar-se que, embora o Néon tenha um peso molecular 10 vezes superior ao do Hidrogénio, tem um potencial narcótico igual a metade deste, ao passo que esse mesmo Néon, tendo um peso molecular 5 vezes superior ao do Hélio, tem um potencial narcótico praticamente idêntico. É, no mínimo, curiosa a correspondência entre a relação de solubilidade de cada gás (solução do gás / solução do azoto) e o respectivo potencial narcótico.

BarPeso MolecularSolubilidade em ÓleoRelação de Solubilidade*Potencial narcótico relativo**
Hélio40,0150,220,23
Néon200,0190,280,28
Hidrogénio20,0400,600,55
Azoto280,0671,001,00
Argon400,1402,092,33
Krypton83,70,4306,427,14
Xénon131,31,70025,3725,64
(*) Relação Solubilidade do gás/Solubilidade do azoto
(**) Relação Potencial narcótico do gás/Potencial narcótico do azoto

AÇÃO EM FASE HIDRÓFOBA

Há substâncias que absorvem água (o algodão, por exemplo), substâncias hidrófilas, e outras que não (as gorduras, por exemplo), substâncias hidrófobas. No organismo humano há membranas que dum lado são hidrófilas (fase hidrófila) e do outro são hidrófobas (fase hidrófoba). Segundo esta teoria, os gases inertes actuariam em fase hidrófoba da membrana celular da célula nervosa. Ao actuar na membrana celular, o gás iria interferir, de alguma forma, com a biologia celular. Porém, alguns estudos recentes evidenciaram alguma resistência das membranas aos efeitos dos gases inertes, pelo que se procuram outros locais hidrófobos onde esses gases poderiam actuar. Estudos em bactérias luminescentes parecem demonstrar que esses locais podem ser algumas enzimas necessárias à biologia celular, em que os gases actuariam por ligação a determinados receptores por competição com essas enzimas.

TEORIA NEUROFISIOLÓGICA

Segundo esta teoria, o ponto de interferência dos gases inertes seria o axónio e a neurotransmissão sináptica. As evidências existentes não apontam para o axónio como o principal local de distúrbio, porquanto o axónio está envolvido na transmissão dos estímulos da perceção e na transmissão dos impulsos nervosos para a execução. Ora, sendo o movimento mediado por impulsos nervosos conduzidos por axónios, e sabendo que o movimento e a destreza manual só muito tardiamente são envolvidos na clínica da narcose, não resta muito para dar validade a esta teoria. Recentemente aponta-se o chamado Sistema Reticular (uma área do Sistema Nervoso Central) como provável local de acção dos gases inertes. O relativo desconhecimento da fisiologia deste sistema não permite tirar, para já, qualquer conclusão. A principal dificuldade na investigação deste assunto radica-se no facto dos primeiros e principais sintomas da narcose envolverem pensamento. Ora, onde e como se processa o pensamento?

CONCLUSÃO


Quanto à causa da narcose, segundo a teoria em vigor, a responsável é a pressão parcial do azoto. O que ressalta de todas as pesquisas é a grande diferença de susceptibilidade de pessoa para pessoa. Mais ainda, a susceptibilidade individual pode variar de um dia para o outro.

Quando vamos mergulhar, todos corremos o risco de narcosar

Face ao que sabemos sobre a narcose pelo Azoto e tendo em conta que todos estamos sujeitos a sofrer este tipo de intoxicação, antes de mergulhar deve ter-se em atenção as seguintes sugestões:

APRENDER A CONHECER OS SEUS LIMITES

Disciplinar-se. O mergulho é uma atividade que implica várias tarefas: o mergulhador deve prestar muita atenção aos seus pensamentos, sentimentos, concentração, profundidade, consumo de ar e ainda ao seu companheiro. Se notar uma súbita sensação de atordoamento ou uma certa confusão, deve tentar mentalmente voltar atrás e compreender o que se está a passar consigo e à sua volta. Depois deve subir lentamente alguns metros.

VIGIAR OS NÍVEIS DE CO2

O aumento de CO2 pode tornar o mergulhador mais sensível à narcose. O efeito é sinergético, o que quer dizer que é cumulativo. Respirar profunda e pausadamente. Não fazer esforços.

EVITAR O ÁLCOOL

Ao planificar uma saída de mergulho não esquecer que o álcool aumenta os sinais e os sintomas da narcose. Porquê? Devido aos efeitos similares e cumulativos ao excesso de azoto. Uma recomendação razoável será a não ingestão de álcool pelo menos nas 24 horas anteriores ao mergulho.

DESCANSAR ANTES DE MERGULHAR

Evitar situações de grande trabalho físico, antes, durante e após o mergulho. Níveis elevados de CO2 no corpo potenciam a narcose, devido a um conjunto de efeitos metabólicos ocorridos ao nível dos neurotransmissores do cérebro.

ACALMAR-SE ANTES DO MERGULHO

A ansiedade aumenta a susceptibilidade à narcose.

Desconhece-se o mecanismo exato, mas sabe-se que afeta os neurotransmissores cerebrais onde a ansiedade se desenvolve.

DESCER LENTAMENTE

Várias experiências demonstram que a sintomatologia da narcose surge mais rapidamente e com maior intensidade em descidas rápidas. As tabelas Buëhlmann recomendam uma velocidade máxima de descida de 20 metros por minuto.

MANTER-SE QUENTE

Da mesma forma que a ansiedade, o mecanismo preciso do efeito da temperatura sobre o nosso cérebro é desconhecido. Sabe-se sim, que baixas temperaturas têm um efeito anestésico e analgésico sobre o nosso cérebro, o que pode provocar uma perceção tardia dos sintomas da narcose.